Um prelúdio sobre a reforma tributária
O modelo brasileiro de tributação foi instituído na década de 60, a partir do Código Tributário Nacional (CTN), e, posteriormente, pelas alterações trazidas pela Constituição Federal de 1988. Mas esses dois diplomas estão longe de concentrarem toda a legislação tributária existente; no sistema que impera por aqui, tanto a União quanto os 26 Estados e os 5.568 Municípios têm competência para disciplinar suas próprias regras fiscais, o que dá origem a uma miscelânea de normativas que, sob consenso, deixam o sistema complexo, disfuncional e ineficiente.
A esta altura do debate sobre a reforma tributária já é conhecimento comum que o Brasil ocupa umas das piores posições no ranking Doing Business, especialmente quando o assunto é compliance tributário. Na ocasião, o ranking estimou que as empresas brasileiras gastam em média 1.500 horas/ano para calcular, preencher as declarações e concluir o pagamento dos seus tributos, enquanto a média global é de 233 horas/ano e a média dos países da OCDE é de cerca de 164 horas/ano [1].
Não é para menos que debates sobre possíveis reformas tributárias se arrastam desde meados de 1995, desde o governo FHC. Aliás, os princípios basilares das propostas de reforma, incluindo as atuais PECs 45/2019 e 110/2019, sempre são os mesmos. Afinal, qual brasileiro não reza por um sistema de tributação mais transparente e simplificado, que gere maior segurança aos contribuintes, preze por mais competitividade entre as empresas e atraia o apetite de investidores estrangeiros?
É neste contexto que recentemente foi aprovado pela Câmara dos Deputados o novo texto da PEC 45/2019, cujas disposições unificam os tributos sobre consumo (ISS, ICMS, IPI, PIS e COFINS) em apenas dois tributos sobre valor agregado, modelo que ficou conhecido como IVA Dual. Neste sistema, proposto inicialmente na PEC 110/2019, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, substituiria os tributos federais PIS e COFINS; já o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), sob gestão compartilhada entre estados e municípios, agregaria o ICMS (estadual) e o ISS (municipal).
Ainda, o texto prevê a criação do Imposto Seletivo (IS), de gestão federal, cuja finalidade seria o desestímulo ao consumo de certos bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente. Por sua natureza extrafiscal, muitos tratam do IS como um substituto do IPI, apesar de a comparação não ser tão simétrica.
Os impactos no setor varejista
O primeiro quesito a ser considerado é que, como o varejo é a ponta final da cadeia produtiva, a reforma poderá gerar reflexos positivos, pois, em razão da não-cumulatividade dos novos tributos, as empresas poderão se creditar das cadeias anteriores e, como consequência, haverá a incidência da tributação apenas sobre o valor agregado à mercadoria para revenda ao consumidor final. Destaca-se que este crédito será permitido independentemente do efetivo pagamento do tributo pelo fornecedor.
O modelo da não-cumulatividade do IVA consiste justamente na possibilidade de abater os débitos sobre o imposto devido nas vendas com o crédito do imposto incidente no momento da aquisição dos insumos. Além disso, tal aplicação e arrecadação será baseada no princípio do destino; ou seja, não fará mais diferença o local onde as empresas estão instaladas, mas sim onde se concentram os consumidores desses bens e serviços, o que provavelmente dará fim à chamada guerra fiscal entre os estados da federação.
Outro ponto positivo, especialmente para o sentimento de confiança do consumidor final, é o fato de que os tributos sob o modelo IVA de tributação serão cobrados “por fora” do preço do bem ou do serviço, tornando possível a identificação do exato montante fiscal embutido no valor da mercadoria.
Interessante pontuar, também, que foi aprovada a possibilidade de devolução do imposto recolhido no modelo de “cashback” para contribuintes de baixa renda inscritos no sistema CadÚnico do governo, com o intuito de devolver o valor correspondente ao imposto cobrado sobre gastos mensais com alimentação e outros itens essenciais às famílias, que deverá resultar em um maior estímulo ao consumo no País. Neste modelo, a concessão do benefício é focada naqueles contribuintes que mais precisam, em contraste com a opção por isenções por tipo de mercadoria, que, apesar de mais simples, são políticas menos focalizadas (e portanto menos eficientes).
Aliás, dentro do tema de benefícios fiscais, a intenção a priori da proposta era reduzir/extinguir os incentivos incidentes sobre bens e serviços, em respeito aos princípios da isonomia e da livre concorrência. Porém, após diversas discussões e análises setoriais, houve, com a aprovação do novo texto, a manutenção dos regimes tributários favorecidos da Zona Franca de Manaus e do Simples Nacional, bem como a redução a zero das alíquotas dos produtos da cesta básica, produtos hortícolas, frutas, ovos; serviços de educação superior; serviços do setor de eventos e dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência.
Ainda, haverá a possibilidade de reduzir alíquotas, por meio de Lei Complementar, para segmentos relacionados a serviços de educação, transportes, saúde, produtos agropecuários, medicamentos, produções artísticas, culturais e para bens e serviços relacionados à segurança, à soberania nacional e à segurança cibernética.
Há quem diga que todas essas disposições e a redução da base de incentivos fiscais poderá afetar negativamente as atividades do setor de varejo, ainda que o governo trabalhe sob a promessa de não aumentar a carga tributária a partir da simplificação do IVA Dual. Algumas projeções, aliás, estimam que a reforma levará ao aumento de 10 a 15% dos produtos do varejo, à medida que as empresas repassam ao consumidor final a maior carga tributária suportada.
Ainda assim, deve-se enfatizar o possível cenário de que a reforma tributária aumentará a eficiência e a produtividade da economia brasileira, o que naturalmente culmina com um aumento de produto interno bruto e de consumo. Atualmente, é esperado que a reforma tributária gere um crescimento do PIB superior a 12% em 15 anos, o que resulta numa média de R$ 1,2 trilhão a mais do PIB do ano de 2022.
Sendo o varejo um setor cíclico, curto-prazista e altamente exposto à propensão a consumir da população, as benesses macroeconômicas talvez superem o esperado aumento na carga tributária das empresas.
Sobre a transição da reforma
Ainda que benéficos, estima-se que os efeitos macroeconômicos da reforma somente serão inteiramente percebidos com pelo menos 10 anos do período de transição, quando haverá maior familiarização com a nova estrutura de tributação e quando as alíquotas do IBS, do CBS e do IS já estarão em seus patamares finais. Portanto, as empresas terão um longo caminho de adaptação à nova estruturação tributária do consumo, até para parametrizar os preços dos produtos de acordo com o comportamento do consumidor ao longo deste período.
Esta transição seria iniciada a partir de 2026, quando o IBS e a CBS passariam a carregar alíquotas de 0,1% e 0,9%, respectivamente, estando a compensação com as contribuições para o PIS ou a COFINS permitida. Trata-se de uma fase de teste que experimentará a adesão da população aos novos tributos. Espera-se que uma lei complementar que discipline a cobrança desses dois tributos seja promulgada neste período.
Já no ano seguinte, em 2027, a CBS substituiria completamente os tributos federais, sob alíquota a ser definida pelo Senado a fim de garantir que a arrecadação seja mantida constante. É neste ano que o PIS e a COFINS serão extintos e o IPI será zerado, salve algumas exceções referentes à Zona Franca de Manaus.
Quanto ao IBS, é apenas em 2029 que se dará início à sua transição. Por ser voltado a estados e municípios, sua gradual introdução afetaria diretamente o ICMS e o ISS, que seriam reduzidos na mesma medida até o ano de 2033. A partir de 2029, as alíquotas do ICMS e do ISS caem a 90% do seu valor inicial; em 2030, a 80% do valor inicial; em 2031, a 70%; em 2032, a 60%; até que enfim sejam extintos em 2033.
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https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/06/06/relator-da-reforma-tributaria-sobre-o-consumo-apresenta-diretrizes-da-proposta-nesta-terca-feira-entenda.ghtml
https://praserjusto.com.br/comparativopec45pec110/?gclid=Cj0KCQjwj_ajBhCqARIsAA37s0yT5JtY6s9lcjjJ7nRnmQSBjZaYrYGoMhFUkFGAJVFU6iGR_2lQBtIaAi0BEALw_wcB
https://www.camara.leg.br/noticias/969564-reforma-tributaria-deve-ser-votada-no-inicio-de-julho/?utm_source=the%20news&utm_medium=newsletter&utm_campaign=07_06
https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/reforma-tributaria/
https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/ReformaTributaria/index.html
https://economia.ig.com.br/2023-07-07/reforma-tributaria-transicao-concluida-2078-entenda.html
Artigo escrito por:

Maria Eduarda Diniz
Advogada na Monteiro e Monteiro Advogados Associados
eduarda.diniz@monteiro.adv.br