A prática de atendimentos de saúde à distância não é um tema novo no cenário brasileiro ou mundial, foi alvo de intensos debates durante os anos 90 e compôs a pauta principal da 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em 1999. O encontro em questão, aliás, resultou na Declaração de Tel Aviv, documento em que o Brasil figura como signatário e que instituiu responsabilidades e normas éticas na utilização da telemedicina.
É certo que as recomendações ali firmadas motivaram, ainda em 2002, normatização específica pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, mais precisamente por meio da Resolução nº 1.643, de 07 de agosto de 2002. A normativa, atualmente revogada, veio como complemento às disposições contidas no Código de Ética Médica vigente à época.
No entanto, por mais que nos anos seguintes tenham sido publicadas normativas específicas sobre o atendimento médico à distância, a real viabilização para o exercício da telemedicina ocorreu somente em meio à pandemia da COVID-19. Neste período, a telemedicina surgiu como real alternativa para os pacientes crônicos, pós-cirúrgicos e de risco, ou mesmo para os casos de menor complexidade que não mais teriam que se deslocar para centros médicos já superlotados.
Ainda assim, mesmo em cenário pandêmico, o Conselho Federal de Medicina autorizou o exercício da telemedicina apenas em situações específicas e excepcionais, respondendo às pressões do Ministério de Estado da Saúde, por meio do Ofício CFM nº 1.756/2020 – COJUR.
Face à insuficiência normativa deixada pelo conselho profissional, foi sancionada a Lei nº 13.989 de 15 de abril de 2020, bem como editada a Portaria do Ministério da Saúde de nº 467, de 20 de março de 2020, por meio das quais, de forma curta e pouco específica, foi autorizada a telemedicina de forma mais generalizada enquanto perdurasse a crise sanitária.
A partir daí, a realidade do atendimento à distância passou a ser difundida em todo o território nacional, promovendo a construção de uma nova relação médico-paciente e viabilizando o atendimento a regiões de difícil acesso, o que aliás permitiu a obtenção de dados gerais que auxiliam no planejamento da prestação de saúde no país.
Depois de suavizada a crise sanitária, ao se analisar seus resultados no tecido social, é possível afirmar que a telemedicina foi efetivamente implantada no país. Sua utilização foi aceita e popularizada em vários cenários de atendimento, o que por sua vez fez surgir a necessidade de afastar uma legislação transitória, substituindo-a por uma legislação permanente e específica.
A pressão social pela permanência da prestação médica à distância motivou o Conselho Federal de Medicina a publicar a Resolução CFM nº 2.314, de 05 de maio de 2022. Em paralelo, foi aprovada a Lei nº 14.510, em de 27 de dezembro de 2022, que altera da Lei nº 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e enfim disciplina, de forma permanente, a prática da telessaúde em todo o território nacional.
O termo “telessaúde”, a propósito, foi utilizado pelo Legislador de forma proposital, a fim de abranger todas as áreas de saúde, conforme disposto em seu artigo inaugural.
Pois bem, embora tenhamos duas normativas para tratar, em tese, do mesmo cenário, é necessário ter em mente que a Lei nº 14.510/2022, ao incluir o Art. 26-D da Lei nº 8.080/1990, deixa claro que é de competência dos conselhos profissionais a normatização ética das atividades. Indiscutível, assim, a validade da Resolução nº 2.314/2022 para regular a atividade médica, mesmo tendo sido publicada em data anterior à vigência da lei em referência. Isso porque aborda especificamente a atividade médica, estabelecendo as diretrizes de atendimento que precisam ser observadas para uma atividade ética e que preserve os nortes principiológicos da profissão.
De forma geral, e à semelhança do que aconteceu com o CFM, as normativas nos conselhos profissionais têm a prerrogativa de atuarem em caráter complementar à legislação, dando especificidade e concretude às normas gerais previstas no texto da lei.
Em contraponto, em que pese a Resolução nº 2.314/2022 ter sido estruturada de forma específica e minuciosa para resguardar o médico e evitar danos ao pacientes, ela também inclui obrigações não previstas na Lei nº 14.510/2022. Por exemplo: é prevista, na resolução, a realização de consultas presenciais no período de 180 dias em caso de doenças crônicas, mesmo que a primeira consulta seja virtual.
Ao que parece, a intenção do CFM é a preservação da relação médico-paciente, essencial à qualidade do serviço e à prevenção do temido erro médico. Assim, em cenários de atendimentos virtuais em pacientes crônicos, resta mais importante do que nunca o consentimento livre e esclarecido do paciente, principalmente em via formal, de que escolheu ser atendido à distância, a despeito das limitações de diagnóstico impostas por este modal. Esta declaração, por exemplo, resguardará o médico em potenciais complicações futuras.
É possível concluir, portanto, que a Lei nº 14.510/2022 surge como normativa genérica para autorizar a atividade de profissionais de saúde à distância, instituindo a telessaúde como gênero, sem afastar o essencial papel do Conselho Federal de Medicina (e demais conselhos profissionais) quanto à regulamentação específica de suas atividades virtuais. Logo, cabe ao profissional que exerce a telessaúde ficar atento às normativas éticas, o que certamente reduzirá os riscos atrelados a complicações médicas em de pacientes atendidos à distância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BRASIL. Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020 – Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Lei/L13989.htm>. Acesso em 12 de fevereiro 2023.
BRASIL. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022 – Disponível em: <hhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14510.htm>. Acesso em 11 de fevereiro 2023.
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm>. Acesso em 13 de fevereiro 2023.
CFM. Ofício CFM nº 1756/2020- COJUR. Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf>. 12 de fevereiro 2023.
CFM. Resolução CFM nº 1.643/2002. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2002/1643>. 12 de fevereiro 2023.
CFM. Resolução CFM nº 2.314/2022. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2022/2314_2022.pdf>. 12 de fevereiro 2023.
- Portaria nº 467, de 20 de março de 2020 – Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/prt/portaria%20n%C2%BA%20467-20-ms.htm>. Acesso em 14 de fevereiro 2023.
Artigo escrito por:

Samantha Queiroz
Advogada na Monteiro e Monteiro Advogados Associados
samantha.queiroz@monteiro.adv.br