Os precatórios e as requisições de pequeno valor (RPV) são instrumentos utilizados pelo Judiciário para requisitar ao Poder Público o pagamento de dívidas oriundas de processos judiciais. A diferença entre esses dois instrumentos se dá em termos de valor: enquanto os precatórios se referem a valores consideravelmente altos, as RPVs estão limitadas a um valor de sessenta salários-mínimos .
Para os devidos saques, é necessário que o juiz da execução encaminhe para o Presidente do Tribunal o requerimento para pagamento. A Presidência, então, comunica o ente público responsável quanto aos valores a serem pagos. Os requerimentos encaminhados à Presidência do Tribunal competente até o dia 1º de julho devem ser incluídos na proposta orçamentária do ano subsequente. Portanto, os precatórios encaminhados ao Presidente do Tribunal até o dia 1º de julho são pagos até o dia 31 de dezembro do ano seguinte.
Ocorre que, em 2017, entrou em vigor a Lei No 13.463/2017 que determinou o cancelamento de precatórios e RPVs federais que não fossem levantadas pelo credor no prazo de até dois anos. Nesse diapasão, naquele ano, os precatórios depositados há mais de dois anos foram devolvidos ao Tesouro Nacional, independentemente de autorização judicial ou possibilidade de manifestação dos credores.
Efetivamente, não há de se falar em alteração do direito líquido e certo dos credores, uma vez que a alteração trata apenas do procedimento relacionado ao pagamento dos precatórios, que no máximo voltaria à sua fase inicial. Contudo, nota-se evidentes prejuízos individuais e coletivos provenientes do novo tratamento. Os primeiros na medida em que o pagamento se prolonga no tempo; os últimos posto que a necessidade de pedido para atualização dos valores e reiteração de todo o procedimento aumenta a demanda do Judiciário, colocando em risco a celeridade da prestação judicial.
Assim, merece destaque o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 5755, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em face, exatamente, do art. 2º, caput, §1º da Lei supramencionada que trata sobre o cancelamento de precatórios e RPVs. A tese levantada ressalta que o cancelamento das requisições pelas instituições financeiras oficiais incorre na violação aos princípios constitucionais da separação de poderes, da segurança jurídica, da igualdade, da inafastabilidade da jurisdição e do respeito à coisa julgada nos casos.
Diante da importância do tema, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB solicitou o ingresso na figura de amicus curiae na ação. Na ocasião, a Ordem se manifestou a favor do pedido do PDT, em razão da incompatibilidade manifesta entre a norma legal e a ordem constitucional. A OAB ressaltou a violação aos princípios da separação dos poderes, do devido processo legal, da garantia à coisa julgada e da inafastabilidade da tutela jurisdicional .
Nesse sentindo, em fevereiro de 2021, a relatora do processo, Ministra Rosa Weber, conheceu da ADI proposta pelo partido. Reconhecendo a inconstitucionalidade material do artigo questionado, a Ministra entendeu que o legislador extrapolou o seu espaço de atuação ao determinar o cancelamento automático das requisições não levantadas no prazo de dois anos, sem qualquer possibilidade de contraditório prévio .
Ainda em seu voto recente, a Ministra destacou que a gestão de recursos ligados ao pagamento de precatórios é de competência do Judiciário, como previsto na Constituição Federal de 1988. A Ministra Rosa Weber também asseverou que o texto constitucional não é elástico para possibilitar ao legislador a restrição ou alteração do pagamento dos precatórios, sem o respeito à ampla defesa e ao contraditório.
De tal modo, a Ministra foi precisa ao se manifestar quanto à desproporcionalidade do cancelamento automático dos precatórios e RPVs em razão do decurso de prazo, assim quanto à violação aos princípios da segurança jurídica, da inafastabilidade da jurisdição, da garantia da coisa julgada e do cumprimento das decisões judiciais. Ademais, o voto ainda destacou que a Lei No 13.463/2017 tanto perdeu a Constituição Federal de vista, como também descumpriu a observância da separação dos Poderes, do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da efetividade da jurisdição e do respeito à coisa julgada.
A Min. Rosa Weber declarou, ainda, que a lei impugnada gera tratamento mais gravoso ao credor e cria certa desigualdade entre a Fazenda Pública e o cidadão, tanto na disparidade de armas quanto na diferenciação entre os próprios credores. E, por fim, a Ministra manteve sua posição em relação ao enquadramento do precatório como despesa pública e, portanto, não passível de cancelamento automático pelas instituições financeiras oficiais.
O julgamento virtual da ADI, cujo início foi em 12 de fevereiro de 2021, estava previsto para terminar dia 23 de fevereiro de 2021. No entanto, após o voto da Relatora, o ato foi suspenso em razão do pedido de vista do Ministro Roberto Barroso. Aguarda-se, portanto, a decisão sobre um tema de grande amplitude, dada a quantidade significativa de precatórios e RPVs cancelados desde 2017 por meras falhas processuais (algumas simplesmente relacionadas à demora do Judiciário em expedir o alvará de pagamento).
Destaca-se que o início do julgamento da ADI 5755 demonstra que a situação tem potencial de ser brevemente resolvida com a declaração de inconstitucionalidade do art. 2º, caput, §1º da Lei No 13.463/2017, para que os valores depositados não possam ser cancelados pelas instituições financeiras oficiais. Para complementar a tese, já há entendimento no STJ no sentido de reconhecer que a transferência de propriedade dos montantes dos precatórios e RPVs para os credores se dá no momento do depósito dos valores . Segue que, já que se trata de patrimônio do credor, as instituições não podem exercer o papel que seria do Judiciário.
Referências
BRASIL. STJ. ADI nº 5755. Partido Democrático Trabalhista. Relator: Rosa Weber. Brasília, DF, 12 de fevereiro de 2021. Dou. Brasilia, 12 fev. 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5238859. Acesso em: 24 fev. 2021
BRASIL. STJ. REsp nº 1874973/RS. Relator: Napoleão Filho. Dou. Brasilia. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=116351036®istro_numero=202001161151&peticao_numero=-1&publicacao_data=20201013&formato=PDF. Acesso em: 25 fev. 2021.
OAB (Brasil). OAB requer ingresso em ação que contesta cancelamento de precatórios. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/57577/oab-requer-ingresso-em-acao-que-contesta-cancelamento-de-precatorios. Acesso em: 24 fev. 2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13463.htm –
Dispõe sobre os recursos destinados aos pagamentos decorrentes de precatórios e de Requisições de Pequeno Valor (RPV) federais. – 25 fev. 2021
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm- Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – Acesso: 24 fev. 2021
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1 A RPV não supera o teto de sessenta salários-mínimos e foi criada para agilizar o pagamento das dívidas dos entes públicos em razão de condenação judicial. Por ser de pequeno valor, essa requisição possui procedimento mais simples. No caso, após expedido pelo juiz, a RPV é encaminhada ao ente público – que deve efetuar o pagamento em até sessenta dias.
2 OAB (Brasil). OAB requer ingresso em ação que contesta cancelamento de precatórios. Disponível em: https://www.oab.org.br/noticia/57577/oab-requer-ingresso-em-acao-que-contesta-cancelamento-de-precatorios. Acesso em: 24 fev. 2021.
3 BRASIL. STJ. ADI nº 5755. Partido Democrático Trabalhista. Relator: Rosa Weber. Brasília, DF, 12 de fevereiro de 2021. Dou. Brasilia, 12 fev. 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5238859. Acesso em: 24 fev. 2021
4 Como, por exemplo, o REsp No 1874973/RS, de relatoria do Min. Napoleão Filho, julgado em 06/10/2020, e publicado em 13/10/2020.
Artigo escrito por:

Stéphanie Fernandes
Advogada na Monteiro e Monteiro Advogados Associados
stéphanie.fernandes@monteiro.adv.br