O dilema entre a execução do passivo fiscal de uma companhia e a situação de Recuperação Judicial é um tema recorrente em discussões sobre o que realmente significa o soerguimento econômico de uma empresa. A origem dessa problemática se dá no Art. 57 da Lei 11.101/2005 (Lei de Falências e Recuperação Judicial), que determina a necessidade de apresentação de certidão negativa de débitos tributários para a homologação do plano de Recuperação Judicial.
A discussão é originada da observância de situações muito corriqueiras em que a Recuperanda já sofre com um passivo fiscal descontrolado, abarcado por sucessivas execuções fiscais, que por si só já é uma das raízes da situação de insolvência. Não raro, nessas situações, torna-se impossível a quitação do débito fiscal para obtenção das certidões de regularidade, inviabilizando, por consequência, todo o processo de Recuperação da Empresa.
Não bastasse, a Execução fiscal tem um rito próprio, distinto e autônomo da Recuperação Judicial. O Art. 5°, da Lei n° 6.830 (Lei das Execuções Fiscais – LEF) estabelece que a competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário, podendo o juízo promover todos os atos necessários para saldar o crédito tributário da Fazenda, incluindo o bloqueio, penhora e arresto de bens da empresa que, em sua maioria, são essenciais para garantia e cumprimento do plano de recuperação.
Como as empresas poderiam cumprir seus planos de recuperação se os seus ativos poderiam ser penhorados a qualquer momento para saldar seu passivo fiscal? Qual a proteção que a empresa recuperanda teria para manter a saúde empresarial durante e após a recuperação? Qual proteção teriam os participantes de eventual processo de alienação de bens se soubessem que os ativos objetos podem ser bloqueados pelo Fisco?
Uma grande guerra passou a ser travada. Em decisão de 2013, a Corte Especial do STJ, em julgamento do REsp 1.187.404/MT, trouxe o entendimento de dispensa da regularidade fiscal para que o plano das empresas aprovado fosse homologado. Contudo, se posicionou no sentido de que a Execução Fiscal não é interrompida pelo Plano de Recuperação Judicial Homologado e esse referido plano não é competente para decidir sobre constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa (Súmula 480 – STJ). Ou seja, relativizou a questão da certidão de regularidade, mas manteve a possibilidade de Execução Fiscal se sobrepor ao juízo da Recuperação Judicial, mantendo a instabilidade do plano e a dificuldade das empresas de alcançarem sua solvência.
Enquanto as empresas buscavam restringir os atos executórios das Execuções Fiscais, a Fazenda Pública, por sua vez, buscou estabelecer condições de quitação do passivo fiscal de forma mais relativa pra as empresas recuperandas. Ao editar a Lei No. 13.043/2014, a Fazenda possibilitou o parcelamento dos créditos tributários para fomentar o interesse de quitar seus débitos fiscais – afinal, o Art. 57 da Lei 11.101/2005 foi apenas relativizado pelo judiciário e em nenhum momento considerado inconstitucional.
A discussão manteve-se por mais alguns anos. Em 2018, o STJ, em julgamento do REsp 1.694.316/SP, do 1.712.484/SP e do 1.694.261/SP, afetou para julgamento na sistemática de Recurso repetitivo através do Tema 987:
“Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária”
Com a suspensão de todos os processos em decorrência da afetação do tema, as empresas passaram a desconsiderar o crédito tributário nas recuperações judiciais. Ao mesmo tempo em que não precisavam se preocupar com a obtenção de regularidade fiscal para ter seu plano homologado, também não precisavam se preocupar com qualquer bloqueio decorrente de execuções fiscais. Muitas empresas, então, passaram a ter um passivo fiscal superior ao da própria recuperação sem, contudo, sequer mencioná-lo em seus planos. Em poucos casos, aliás, declarava-se o interesse para quitação deste passivo no futuro.
Em 2020, esse cenário tomou uma outra forma. A Lei de transação tributária no âmbito Federal (Lei No. 13.988/2020) trouxe várias possibilidades de quitação com condições de desconto de até 70% e parcelamento em até 120 meses, além de autorizar a utilização de créditos próprios relativos a outros tributos para liquidação de até 30% da dívida consolidada em parcelamentos no âmbito da Receita Federal do Brasil. O Fisco passou a demonstrar o seu real interesse em permitir que as empresas em recuperação buscassem as várias possibilidades de adequação ao cenário enfrentado.
Dadas as novas condições propostas pela Fazenda, a nova Lei de Falências e Recuperação Judicial (Lei No. 14.112, de dezembro de 2020), manteve a íntegra do Art. 57 da Lei 11.101/2005, ou seja, ainda é necessário a apresentação da certidão de regularidade fiscal para homologação do plano de recuperação aprovado.
Contudo, um grande avanço foi alcançado através da nova Lei. Em seu Art. 6º, § 7º-B, o legislador foi claro ao apontar que o verdadeiro fim da Recuperação Judicial é manter a saúde da empresa durante e após o seu processo de recuperação, garantindo a manutenção de todos os seus bens essenciais para esse fim, incluindo-se os atos executórios do juízo de Execução Fiscal, à ver:
“O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional”
Neste sentido e enfim, o Princípio da Preservação da Empresa foi colocado como verdadeiro norteador do Processo de Recuperação judicial, permitindo a esse juízo a possibilidade de, em trabalho de cooperação jurisdicional com o juízo da Execução fiscal, permitir a saúde do plano de recuperação com o fim de restabelecer a empresa ao seu patamar de solvência, inclusive sobre os créditos fiscais. Se por um lado não mais se questiona a necessidade da certidão de regularidade fiscal para homologação do plano nem a competência e autonomia do juízo da Execução Fiscal, por outro a nova Lei trouxe a segurança legal necessária aos administradores e credores do plano de recuperação quando da alienação dos bens da Recuperanda.
Artigo escrito por:

Levir Rocha
Advogado na Monteiro e Monteiro Advogados Associados
levir.rocha@monteiro.adv.br